sábado, 21 de julho de 2012

O folclore político, a ditadura e os nossos heróis de barro nos livros de História

No chão, uma moça agoniza com os cabelos solapados e as mãos mergulhadas numa poça de sangue. Em pé, eis o torturador, desencapando um fio de cobre para enterrá-lo na língua feminina e ardilmente violentá-la o sexo. Uma imagem chocante, que podia, para efeitos dramáticos, ser apenas uma representação teatral. Mas não é. Essa história crua é atualmente encenada nas praças brasileiras, em voz alta, por jovens que reconhecem na ditadura, imagens sanguíneas de outros tempos. Tempos em que estes mesmo jovens inquietos seriam calados por um sistema autoritário de governo. Essas cenas de violência e crueldade são mais que alegorias que mancham e marcham para o raso da verdade. Estas imagens, por muito tempo escondidas nos porões de nossa humilhante e inesquecível ditadura, finalmente, encara o conhecimento popular.

Brasil dos anos 60. Um regime militar é implantado sob o mentiroso pretexto de evitar que nossa Pátria fosse tomada por estrangeiros e comunistas. Desculpas escorregadias e medos foram construídos. A sociedade brasileira não é cega, nem burra, mas engana-se com promessas fáceis e, carentes de heróis, acreditou e consagrou picaretas opulentos. E assim vemos nossa liberdade escorrer pelo ralo da violência. Nossos poetas foram calados. Nossos amigos, mortos. Mães não velaram corpos de seus filhos nunca achados. Mas mesmo assim nossa arte não foi toda silenciada. Nossas músicas refletiam e revelavam estes e outros sofrimentos com ousadia e candura.

Na década de 60, marco inicial da ditadura, o tropicalismo e outros movimentos musicais viviam sua efervescência. Expressivos cantores como Geraldo Vandré, Caetano e Gilberto Gil foram censurados em suas músicas e impedidos de embalarem sua arte. Chico Buarque, inventor das belas canções “Apesar de Você” e “Cálice” sofreu até a última gota com a ascensão do regime. Seu espírito libertador, impudico e – porque não? – indecente, provocou – além de moças de saia rodada – às dezenas de militares aliados ao regime. Do brega ao sofisticado, nada que despertasse mentes e corações ficou livre da navalha do estado ditatorial. E isso pedia ainda mais criatividade de nossos artistas.
Geraldo Vandré, com sua canção “Disparada”, foi então mais feérico e congelou em sua música o espírito ufanista da época:
“Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando
As visões se clareando, até que um dia acordei
Então não pude seguir valente em lugar tenente
E dono de gado e gente, porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente
Se você não concordar não posso me desculpar
Não canto pra enganar, vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar”.   
Na contramão, no entanto, seguiu nossa linda e altiva História do Brasil. Apesar dos sangues empretecidos nas ruas, os livros didáticos gritavam – e até hoje muitos gritam - rocos episódios que nunca aconteceram, poupando torturadores, inventando tradições, em nome da fabricação do espírito nacional. Em nome disso, brasileiros e brasileiras, alguns iludidos, outros nem tanto, homenagearam e comemoraram na mesma mesa de assassinos. Nosso Brasil sentou à mesa dos violentadores por muitas vezes e até seduziu ou deitou com muitos deles. A política, infelizmente, tem esta característica. Grandes inimigos tornam-se afetuosos compadres quando há rabos presos ou interesses do umbigo em jogo. .
O Movimento Levante Popular critica as homenagens prestadas aos ditadores.
Em nome de uma história que emocionasse, formamos gerações que ainda acreditam em contos da carochinha e em fábulas com finais edificantes. Até que pessoas com o espírito de Chico aparecem para jogar tomates e expor a verdade dura que nos ocultaram a vida toda.
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É destes intensos episódios reinvindicantes, que dorme, isto é, existe um projeto de lei de alguns deputados cariocas solicitando a alteração do nome da ponte Rio-Niterói (atualmente Arthur da Costa e Silva) para que se crie a cultura de não homenagear mais quem espalhou dor e tormento para o povo brasileiro (se é que essa unidade existe). E muitas outras iniciativas populares, em todo país, tem exigido que o Brasil pare de fabricar heróis e se concentre, no mínimo, em contar a verdadeira história.

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