segunda-feira, 27 de maio de 2013

Relações Jurídicas


Por Bruno Silva

Uma mosca invade o salão em cuja ocasião agrupa estudantes de Direito na comemoração de um prêmio da OAB. Sem plano de vôo, ela, a mosca, desbaratada, derrapa e pousa suas garras e antenas minúsculas na superfície de um livro volumoso, o Vade Mecum. Não em qualquer “Vadinho”, o livro com o espirito escorregadio do personagem de Jorge Amado, mas com rara inclinação para aventuras. Era o exemplar do livro jurídico cujo proprietário respondia pela presidência da OAB, e encontrava-se ao lado da jarra transparente de água, enfeitando aquele cenário obscuro e dantesco da mesa oficial. Para silenciar a multidão, o presidente levantou-se e pôs o dedo a rasgar uma porção do ar na sala, e só então, muda e perplexa, a mosca pôde flagrar a conversa do secretário com o presidente, que engomado e ereto, sentara-se novamente.

Secretário do PresidenteData Vênia, a quantas anda a afortunada relação do magnífico avec a senhora A? – assim que perguntou, direcionou o capataz seus olhos e sobrancelhas erguidas em direção a uma garota de volumosos seios na primeira fila trajando um vestido laranja, os cabelos presos em um coque e que balançava as pernas nervosamente, afrouxando o vestido cada vez mais, para o delírio dos doutores.

Presidente – Se me é permitido retorqui-lo adotando o saudoso artigo malditamente revogado do Código Penal, o de número 240, cuja estirpe deleitava-se sobre o adultério e o prazer na hipocrisia, ao meditar nele, e como quem segue a lei penal é quem pratica o crime, estou eu fazendo o que a lei manda. À risca. Todas as terças. – disse sem mover uma linha do rosto.

S. – E a excelentíssima cônjuge já não suspeita? – pigarreou o servo com uma intimidade conquistada nos mictórios masculinos das casas de justiça, nas quais deus e homem despacham a mesma matéria.

P.Actore nom probante, reus absolvitur! – cochichou o presidente seu latim enquanto o auditório era preenchido de estudantes e admiradores que ocupavam suas poltronas sob um manto de silêncio e rigor.

A mosca, um bicho kafkiano que dominava todo aquele léxico desde suas visitas às cantinas do STF, não parecia em momento nenhum chocada ou constrangida pelos fatos narrados, acostumada tal a sujeira dos aterros sanitários, na verdade, sentia-se em casa o inseto. E a conversa mantinha-na distraída.

S. – Excelentíssimo, sobre os factos, e a conjunção libidinosa recebera seu parecer favorável ou está aquém dos desígnios de vossa competência? - Disparou o servidor com a voz rugosa em respeito, como quem cede um lugar ao idoso numa fila indiana. Embora sua curiosidade animalesca em conhecer os hábitos da chefia, fôra exprimida num naco de perdigoto lançado do canto da boca em direção à mosca. Agitada e trêmula a mosca zumbiu.

P. – Caro, presto-me instrumenta- (neste meio tempo ouve-se uma tosse seca aqui, um respiro forte de tédio acolá) –velmente em periciar a estrutura corpórea da senhora A, sem contratempos, obstinado, as vezes resfolegante, com a destreza e a determinação que me são peculiares. Porém esta robusta senhora A tem, durante o ato, me surpreendido com absurdos pedidos para que eu lhe diga onomatopéias impronunciáveis de minha parte, que conflita essencialmente com minha formalidade. – fixou os olhos na senhora A, que ainda que alheia à conversa, tremeluzia em seu vestido comestível.

Nesta hora, a mosca vai se rendendo ao pudor, pasmada, e desliza-se sob a superfície do livro poroso até nadar em um mar de artigos e parágrafos constitucionais, belíssimos, quase poéticos! reparou a mosca ao ler (sim, até as moscas consegue-no ler, entender nenhum de nós) e foi ainda paralisada, abandonada ao cenário que a folha construíra, que recebera um golpe fatal, ministrado pelo presidente, destroçando-lhe em mil pedacinhos. Agonizava em seu leito de inseto enquanto lhe vinham as últimas memórias: o artigo 5° de um livro que lhe dera sossego e distração.

A solenidade para o qual o presidente havia sido convidado, finalmente, se inicia. A senhora A, empertigada e moída dentro do seu apetitoso vestido, acalmada com o prenúncio de ouvir seu pequeno deus de terno, apertava o seu próprio exemplar de Vade Mecum, que ela recém adquirira, sobre as pernas cruzadas, impedindo o fechamento do livro com suas mãos suadas marcando um capitulo que lhe parecia especial e fascinante...o CÓDIGO DE ÉTICA E DISCIPLINA DA OAB.

Maio de 2013

*Adendo por Weiss: um retorno das cinzas, um grito nesse nosso silêncio invernal.

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